Na Crista da Onda

Fábio Amorim

Hoje não vou escrever sobre automóveis, porque não dá. Diagnóstico do jejum metálico: coração destroçado pela perda de um velho amigo.

Conto a partir de agora, uma história. Uma linda história sobre um índio urbano que surgiu do mar passou por aqui e viveu 34 anos distribuindo alegria. No final de sua meteórica atuação, em silêncio, tornou-se parte do oceano outra vez. Desse jeito, unindo metáforas à minha emoção, talvez consiga explicar, para quem não o conheceu de perto, um pouquinho da sua enorme dimensão. Refiro-me aqui ao meu querido amigo, Kayan Porto.

A partir do seu desaparecimento, estranhei manchetes na mídia destacando seu título público. Apenas um vereador? Não, definitivamente, muito mais do que isso.

Conheci Kayan aos seis anos de idade. Sereno, e de uma calma incomum, já era talentoso naquele primeiro instante. Relembrei, no sábado passado, junto aos amigos Ricardo Canuto, Flávio Coutinho, Marcondes, Pedro Cid e um de seus irmãos, o Caio Neto, sobre sua incrível habilidade nos jogos de ximbra (bola de gude). Essa é uma das lembranças marcantes, só que no contexto, havia um detalhe: muitas vezes, no final da brincadeira, após vencer a todos, devolvia seus ganhos aos adversários para que a festa continuasse. Menino grande, homem enorme por dentro!
 

O mar - indecifrável universo - já convivia com ele de maneira próxima, desafiadora. A casa de seus pais, Dr. Caio Porto e Dra. Kátia, na Ponta-Verde, exibia um enorme osso de Baleia no jardim. Era curioso, pois aquilo surgia da grama imponente feito um oceano e Kayan gostava do tal amuleto branco.

Pois bem, o tempo passou e a família mudou-se para o Pontal da Barra. Literalmente dentro d’água, Kayan desenvolveu, enfim, suas habilidades maiores. O surf e a caça submarina foram as grandes paixões. Em cada onda, um sorriso, em cada mergulho, uma realização. Desportista nato fazia tudo com humildade e parecia não se importar com troféus. Kayan era um índio, um homem-peixe. Simples, amigo, bondoso, doce, pacato e alegre. Partiu exatamente no dia 19 de abril, dia do índio.

Disciplinado como o sol, desenvolveu hábitos saudáveis, como o de comer pouco e com muita qualidade. Água, peixe, frutas e raízes. Essa era a dieta principal de quem tinha sede de viver, acordando cedo e aproveitando cada instante como se fosse o último.

Intrigado, não conseguia entender como alguém podia, por exemplo, poluir o mar ou cortar uma árvore. Generoso, tinha a família e os amigos como tesouros verdadeiros. O caloroso abraço e a receptiva voz ao telefone eram marcas registradas. Quando o tempo permitia, Kayan sorria, levantava de madrugada, caçava seu próprio alimento e ia dormir com a chegada das estrelas. Esse era o seu ciclo pessoal. Coisa de ser humano preservado em pleno corpo físico, em alma pura, em atitudes magníficas. Costumes de um homem consciente e integrado à natureza.

A não-violência, a generosidade, o trabalho ético, o amor pelo próximo, a disciplina em manter-se saudável, o companheirismo e a garra em conseguir aquilo que queria, foram valores cultivados por ele. Tudo feito com modesta discrição, doação incondicional e amor verdadeiro.

Kayan se foi, e isso é uma dolorosa verdade. Difícil de aceitar a esdrúxula situação, a novela de capítulo surreal que transformou águas de bênção, num flerte fatal. Mas, pensem comigo: a aventura acabou? Jamais! Seu magnetismo, o sorriso constante, a força das convicções, a calma, a paz de espírito. Como foi bom conviver contigo, meu amigo.

Conto somente mais duas dessa figura espetacular. Quando Kayan entrou para a política, questionei: - Ô cara, você tem vocação pra isso? Respondeu-me sem hesitar: - "Vou tentar falar por aqueles que mal sabem que existem". Em outra ocasião, perguntei: - E aí, quando é que vai trocar esse carro por outro melhor? Sorriu, e me disse: - "Isso fica pra depois. O que me importa é que ele ande bem, assim como a vida".

 O mar, as ondas, o barco, o porto. Kayan Porto. Que sonho cortante! Quanta saudade, meu querido amigo... 

Fábio Amorim – Amigo de Kayan e escreve para uma coluna automotiva do Jornal Gazeta de Alagoas.
 

Voltar à Kaian Porto